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Professora de uma academia de ginástica em São Paulo, Verônica Ahrens resolveu, logo depois de formada, trabalhar com outro tipo de treinamento. Após seis meses dando aulas, ela optou para a área de gestão. “Fui gerenciar a academia”, relembra. Hoje, aos 47 anos, é a atual responsável pela área de team building (construção de equipes) da multinacional francesa Cegoc, em Lisboa. O grupo também está no Brasil.
Na capital lisboeta desde fevereiro passado, a mestre em gestão, com especialização em administração de pessoas, com conhecimento de psicanálise e psicologia transpessoal, conta como está sendo sua adaptação à cultura portuguesa e quais são as principais diferenças na sua área entre Brasil e Portugal.
Verônica ressalta que o burnout, síndrome que tem afetado muitas pessoas, é também um problema das empresas, que precisam buscas soluções. Ela ressalta que os trabalhadores europeus têm mais força para dizer não às chefias, quando demandados em excesso. “No Brasil, vejo que, em alguns lugares, os funcionários têm menos voz. Não sei se é por medo de perder o emprego ou de atrapalhar a carreira”, frisa.
Autora do livro Equipes Não Nascem Excelentes, Tornam-se Excelentes (editora All Print, 2012), a executiva enxerga mudanças significativas na vida profissional das pessoas no pós-pandemia, com ganhos para os trabalhadores, como a possibilidade de trabalhar de casa alguns dias da semana. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista que Verônica concedeu ao PÚBLICO Brasil.
Como surgiu o convite para trabalhar em Portugal?
Desde 2016, foram surgindo pequenas oportunidades de treinamento. No México, na Argentina, na França, na Itália, mas eu sempre voltava para o Brasil. Quando vim a Portugal, também para dar formações de liderança, construí uma relação com o CEO do escritório da Cegoc. Ele falou sobre a possibilidade de eu mudar de vez, e foi quando tomei a decisão. E está sendo muito bacana. Acho que a diferença com os meus outros projetos é que, muitas vezes, eu tinha um grupo misto de culturas. Agora, morando no lugar, tenho contato com uma cultura mais dominante, no caso, a portuguesa. Então, eu noto mais as diferenças entre Brasil e Portugal, as adaptações que preciso fazer e também as influências que acabo trazendo do meu país.
Quais são as principais diferenças?
A primeira, eu diria que tem muito a ver com a comunicação. Vejo em Portugal uma comunicação mais direta ao ponto, enquanto que, no Brasil, temos comunicações mais indiretas. Quando você não concorda com alguma ideia, aqui as coisas são ditas de uma forma mais objetiva. Isso foi um aprendizado, porque, nós, brasileiros, tentamos falar com jeitinho. Em Portugal, noto que ninguém está falando nada contra você. A pessoa não é rude, é apenas mais assertiva do que nós, brasileiros. Isso é um dos aprendizados. Um outro, que é bastante importante também, são as relações profissionais. No Brasil, nós criamos, dentro do trabalho, muitos laços de amizade, existe uma informalidade maior. Um vai na casa do outro, tem festa, churrasco. Aqui, vejo que há, no trabalho, uma relação de amizade próxima, mas não são tão informais. Almoçamos e podemos ter um happy hour juntos, mas vejo menos aqueles encontros de fim de semana, do convite “vai lá em casa”. No Brasil, a relação acaba se tornando mais informal.
Isso é bom ou ruim?
Se eu faço comparações baseado no que eu conheço, na forma que fui criada e inserida no mercado de trabalho, vou achar ruim. Mas esse é um grande erro de quem decide, realmente, mudar de país. E isso é um exercício meu, de olhar e não comparar com o que eu conheço. Vou tentar entender como eu navego nessa cultura. Essa é a beleza de querer experimentar uma cultura nova, porque, se ficar comparando vai ter dificuldade de adaptação, de ser inserido. Eu tento sempre ter um olhar curioso.
Sente-se mais sozinha em Portugal?
A executiva Verônica Ahrens aconselha todos a terem um hobby como forma de se desligar do trabalho. O dela é o surf
Arquivo pessoal
A gente vai se conectando com as pessoas, mas sinto que aqui se demora mais para criar esses laços. É até interessante, porque, na empresa, um dos nossos valores é a ‘proximidade’, para que haja mais colaboração entre as áreas. Quando eu tive um primeiro feedback, com a minha liderança direta, foi algo que o meu líder destacou em mim. Ele falou: “De todos os valores, esse (proximidade) é um que você se destaca”. Porque eu converso com um, almoço com outro, mas demora mais para criar uma relação de fazer coisas no fim de semana. Eu acabo fazendo mais esse movimento de ligar para uma pessoa que trabalha comigo e falar: “Olha, eu vi esse programa, vamos juntos?”.
Além de proximidade, quais são os outros valores que destacaria?
O outro é colaboração. Se estamos mais próximos, que a gente possa colaborar mais. Inclusive, eu diria que a colaboração é um valor hoje, na Cegoc, que é mais natural, está mesmo presente, e a proximidade está se construindo mais. Eu acho que tem a ver também com o pós-Covid, que a gente vai para o online e isso gera distanciamento. Hoje, a Cegoc, está passando por um momento de reforma do escritório, em Lisboa, para ter um espaço mais aberto, onde mais pessoas possam trabalhar juntas, no mesmo dia. A agilidade também é um valor que acho importante destacar. E eu vejo também diferenças entre Brasil e Portugal nessa questão.
Quais são?
Em Portugal, vejo uma forma de trabalhar que é mais criada em cima de métodos. Há uma preocupação maior em fazer um planejamento, investir mais tempo em como estruturá-lo. Até as apresentações, se temos um projeto interno, realmente vamos estruturar esse projeto. Isso faz com que a gente leve mais tempo para elaborá-lo, mas, depois, vai ser executado com mais eficiência. No Brasil, acho que pela flexibilidade do brasileiro, a gente acaba indo muito no “vamos experimentando enquanto fazemos”. Isso pode até dar uma sensação de agilidade, no começo, porque não se investe tanto na estruturação, mas, às vezes, é preciso refazer coisas no caminho, se não planejamos tudo.
A senhora falou da Covid. A vida profissional das pessoas mudou muito por causa da pandemia?
O home office ampliou muito se comparado ao que era antes da pandemia. Nós íamos todos os dias ao escritório. Todas as reuniões com clientes eram presenciais. Às vezes, eu fazia duas reuniões por dia, uma de manhã e outra à tarde, me deslocando pela (Avenida) Faria Lima. No pós-pandemia, o presencial acaba sendo uma ou duas vezes na semana. Já era assim no Brasil, e é aqui em Portugal também. Para mim, teve muitos ganhos. Eu gosto dessa possibilidade de ter dias em casa, porque a gente produz e vive de uma outra forma. Agora, nas formações, que é a minha área, temos os formatos online, híbrido e presencial. Eu continuo acreditando no desenvolvimento comportamental, na importância de termos momentos presenciais também. Uma formação até pode ser híbrida, algumas partes online, depois outras presenciais, mas o nível de discussão e de trocas no presencial é outro. O contato humano é outro.
As reuniões online não deixaram as pessoas ansiosas também?
Sim, isso aconteceu. Teve ali uma fase, principalmente, mais no começo, que era uma reunião atrás da outra, e, normalmente, é das reuniões de onde você sai com as demandas. Então, se tem uma reunião atrás da outra, que horas você vai fazer o que precisa no seu trabalho? Isso agora começa a diminuir um pouco, já está mais gerenciável. Outra coisa: a gente tinha aquelas reuniões de uma hora, mas vi várias empresas que implementaram o tempo de 50 minutos. Pelo menos, você dá dez minutos para a pessoa levantar, tomar um café, olhar pela janela. São pequenas coisas que precisam ser inseridas, senão o desgaste é muito grande.
Qual foi a adaptação mais difícil até agora?
Foram várias, mas teve uma que tem a ver com a minha escolha de estilo de vida. Eu decidi, quando vim para Portugal, não ter carro. Faço tudo com transporte público. Decidi também não ter alguém cuidando da limpeza da minha casa. Eu cuido disso. São várias coisas que são mais comuns na Europa, como usar transporte público, andar na rua. No Brasil, ficamos mais presos pela falta de segurança. Outra grande adaptação é entender que, no Brasil, eu já tinha um reconhecimento do meu trabalho. Era conhecida há muitos anos pelo o que faço. Quando chego num mercado novo, que não conheço, é uma adaptação. Vou ter que dar um passo atrás para reconstruir esse meu lugar aqui. Eu diria que é quase a construção de uma nova identidade. Tenho uma identidade no Brasil, que envolve tudo que construí lá, e, agora, é construir uma nova identidade aqui. No começo, é um baque.
A senhora pratica surfe, faz caminhada, meditação. Qual é a importância de o funcionário ter uma atividade fora do trabalho?
Desde que eu trabalho com lideranças, um dos meus princípios sempre foi a saúde. Como cuidamos do lado físico, emocional, mental, espiritual. Faço atividade física e medito todos os dias, e ainda surfo. Todo profissional tem que ter um hobby, porque é o que também faz a gente se desligar do trabalho e olhar para outras coisas. O surfe é o meu hobby. Eu já tive fases de ser workaholic, de me perder no trabalho, não vou negar. Como tem demanda, a gente fica trabalhando. E encontrar um hobby fez toda a diferença na minha vida, porque o surfe faz eu ter que parar e me programar, porque, no fim de semana, vou entrar no mar. Isso tudo tem a ver com questão do burnout também, que está muito presente no Brasil e no mundo.
O burnout é abordado no treinamento?
Sim. Vou alertando sobre isso, mas, às vezes, a pessoa só vai aprender quando chegar ao extremo. Se pudermos perceber antes, fará diferença. Eu falo muito com as lideranças sobre burnout. Tem uma parte que, sim, é da empresa. Então, a empresa tem que entender quais são as demandas, quanto tem exigido de cada um. Tem uma parte do líder direto também, a forma como exige as coisas, os pedidos à noite, no fim de semana, os e-mails. Mas tem uma parte do indivíduo. Nós temos que aprender a ler os sinais na gente, de quando está demais, porque eles aparecem. A pessoa já não dorme direito, tem palpitação. Precisamos ler esses sinais. E, quando falamos das diferenças entre Brasil e Portugal, acho que, na Europa, as pessoas têm um pouco mais de voz, de ir lá e falar: “Não, já deu, aqui eu encerro o meu horário de trabalho” ou “No fim de semana, eu não estou”. No Brasil, vejo que, em alguns lugares, os funcionários têm menos voz. Não sei se é por medo de perder o emprego ou de atrapalhar a carreira.
Qual é a sua opinião sobre o fato de muitos portugueses emigrarem atrás de salários melhores?
Na Cegoc, isso, hoje, não é uma preocupação tão vigente. Temos as pessoas em Portugal, uma equipe bem-formada, não acho que exista esse problema. Mas, quando pensamos numa progressão de carreira, é algo que, no Brasil, as diferenças são muito maiores, até salariais. Quando temos alguém iniciando, que depois vai para uma liderança, uma diretoria, há uma diferença salarial muito grande no Brasil. Aqui, vejo que isso é mais enxuto, as diferenças de salários não são tão grandes. Para uma pessoa que vem para cá e que tem isso como um valor, que pensa em status, benefícios e salários, em Portugal vai ser mais difícil. Tem uma questão de reflexão, o que cada um quer para a sua carreira.
Sempre teve vontade de morar em Portugal?
Eu sempre quis morar fora do Brasil e construir uma carreira internacional. Fiquei um ano na Austrália para aprender inglês. Depois, passei seis meses estudando treinamento, desenvolvimento e a área de RH na Universidade de Toronto, no Canadá. Foi a época que eu comecei a imaginar uma transição de carreira. Eu vim do fitness, fui gestora dentro desse mercado, só que eu queria fazer essa transição para a área de gestão de pessoas. Em 2009, fiz a transição para consultoria, começando a trabalhar com treinamento e formação de lideranças, no escritório da Crescimentum, em São Paulo, que cuida do Cegoc no Brasil. Em seguida, passei uma temporada nos Estados Unidos, de seis meses, só fazendo cursos de aperfeiçoamento. Em 2016, tive a minha primeira experiência com um grupo internacional de executivos. Ai eu me encantei e virou uma meta morar fora. Esse contato com diferentes culturas é muito rico. A gente aprende e cresce muito quando conhece outras realidades.