Polícias condenados por violência doméstica continuam a exercer a profissão | PSP

Polícias condenados por violência doméstica continuam a exercer a profissão | PSP

Em cinco anos, nas forças de segurança foram abertos 495 processos disciplinares por violência doméstica

Perto de uma centena de processos ainda não têm desfecho. Para já, só um em cada cem denunciados foram impedidos de voltar a vestir farda

Polícias condenados
por violência doméstica
continuam a exercer a profissão

Este é o primeiro trabalho de uma série que, nas próximas semanas, lhe trará vozes de várias vítimas e um olhar cruzado sobre o que mudou nos últimos 50 anos em matéria de violência doméstica e resposta policial em Portugal


Não é assunto em Portugal, apesar de quando em vez algum caso saltar para as páginas dos jornais. Afinal, quanta violência doméstica é protagonizada por elementos das forças de segurança? Com que consequências para estas pessoas que juraram garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos? Só com tempo e insistência se vai chegando a algumas respostas, aqui partilhadas em cinco etapas.

A Polícia de Segurança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR) começaram por responder que não sabem quantas denúncias envolvem profissionais seus. A estatística da violência doméstica incide sobre idade, género, grau de parentesco, não sobre profissão. Pela mesma razão, a Procuradoria-Geral da República não é capaz de dizer quantos foram constituídos arguidos, julgados e condenados por este crime.

A Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais depara-se com igual barreira na vigilância electrónica, penas e medidas na comunidade. Só pode dizer que, no final do ano, havia quatro polícias recluídos por violência doméstica, uma vez que o Estabelecimento Prisional de Évora é exclusivo para pessoas que exercem ou exerceram funções em forças ou serviços de segurança ou que necessitam de especial protecção.

Uma centena de denúncias por ano


O Ministério Público (MP) deve comunicar à Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) a instauração de processos em que seja arguido um PSP ou GNR. Todavia, nem sempre o procurador titular do inquérito o faz.

Analisando 20 anos de relatórios de actividades disponíveis no site do IGAI, primeiro, a violência doméstica aparece misturada com “outras factualidades”, depois de 2019, emerge como categoria autónoma, cruzando os objectos das denúncias com as entidades visadas. Somando PSP e GNR, 196 em cinco anos.

Processos administrativos do IGAI por violência doméstica visando PSP e GNR

Fonte: IGAI

O que aconteceu àquelas denúncias? As “certidões são autuadas como processo administrativo e comunicadas ao Comando-Geral da GNR e à Direcção Nacional da PSP”, esclareceu Sónia Marinho, do gabinete do inspector-geral, Pedro Figueiredo. “Nos processos administrativos faz-se o acompanhamento dos processos de natureza disciplinar que corram os seus termos nas forças de segurança.”

Primeira evidência: a violência doméstica, o crime contra as pessoas mais reportado em Portugal, não é tratada pela polícia das polícias. Segundo Sónia Marinho, no IGAI “não há registo de abertura de processos de natureza disciplinar em que a factualidade seja relativa a violência doméstica”.

Sendo o denunciado um elemento das forças de segurança, o MP também deve comunicar as situações à Direcção Nacional da PSP e ao Comando-Geral da Guarda, mas também nem sempre o faz – às vezes são os próprios visados a fazê-lo. Embora não haja total correspondência com as denúncias de violência doméstica, o número de processos instaurados é um indicador.

A pedido do PÚBLICO, a PSP pegou nos processos disciplinares instaurados entre 2019 e 2023 e contou-os (223) e a GNR também (272). São 495 processos em cinco anos, uma média de 99 por ano, quase dois por semana.

A absolvição ou condenação no processo-crime não impõe decisão idêntica no processo disciplinar, mas quer na PSP, quer na GNR é comum o processo disciplinar ficar suspenso até que se conclua o processo-crime. Por isso, 94 daqueles processos (55 da PSP e 39 GNR) ainda se encontram pendentes.

Processos disciplinares instaurados entre 2019 e 2023
na PSP e na GNR

Fonte: PSP e GNR





A major Andreia Lopes, chefe da Repartição de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas da Direcção de Investigação Criminal da GNR, não se espanta com estas casos. Lembra que a violência doméstica é transversal. Acontece em qualquer sítio, idade, etnia, classe social, profissão. Quem agride pode ser polícia, advogado, oficial de justiça, procurador, juiz. “O agressor pode ser qualquer pessoa. Eu estou aqui sentada e posso ser agressora de violência doméstica.” Ou vítima. Também há vítimas de violência doméstica na PSP e na GNR. E até casos em que vítima e agressor vestem farda.

Vítimas mais relutantes em apresentar queixa


Estudos feitos noutros países indicam que a incidência de violência doméstica até é maior nas famílias dos polícias. Tatiana Moura, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, aponta para o perfil dos candidatos, o treino militarizado, a violência que muitos enfrentam no trabalho quotidiano, o stress que tal provoca, a falta de acompanhamento psicossocial consistente. “Há uma normalização da violência que pode trespassar a vida, que pode passar da esfera profissional para a esfera privada.”

Estas vítimas tendem a ter mais dificuldade em apresentar queixa e até em pedir ajuda. A experiência de Carla Melo, do Serviço para a Promoção da Igualdade de Género e de Oportunidades do Município da Póvoa do Lenhoso, tem revelado várias razões para isso. Há o estatuto, a autoridade, o conhecimento que têm do sistema, a posse de armas de fogo. “A violência doméstica é, fundamentalmente, sobre relações de poder. Acontece o agressor coagir a vítima e convencê-la de que ninguém acreditará nela.”

Seja qual for a profissão do agressor, muita violência doméstica nunca chega ao conhecimento das autoridades. Para além do medo de represálias contra si ou pessoas próximas, a vítima pode desconhecer os seus direitos, sentir vergonha, descrença na capacidade do sistema para investigar os factos e punir o agressor, ambivalência.

A ambivalência “é um dos maiores factores” de silêncio, salienta Sofia Neves, professora da Universidade da Maia e especialista na área. “Há uma ligação afectiva que, muitas vezes, faz com que haja uma tentativa de justificar o comportamento. Muitas vítimas dizem: ‘Eu gosto dele, quero é que ele deixe de ser violento’.”

Não raras vezes, a vítima até assume uma atitude protectora. “Receia as repercussões sociais para o próprio agressor”, observa Carla Melo. “Sendo o agressor da PSP ou da GNR, sabe que isso pode trazer-lhe processos disciplinares, o que pode ter consequências até para os filhos. Podem perder algum sustento.”

“Estas questões em meios rurais são ainda mais problemáticas”, torna Sofia Neves, fundadora da Associação Plano i. “Todas as pessoas se conhecem. Por vezes, os agressores ocupam cargos de chefia, o que torna tudo ainda mais difícil.” Ocorre-lhe um exemplo de uma mulher casada com o agente máximo do posto da GNR da sua zona de residência que nunca se atreveu a apresentar queixa em lado algum.

Tantas dúvidas podem passar pela cabeça de uma vítima quando o agressor integra o sistema que a deve proteger. Valorizarão a sua palavra? Diligenciarão a recolha de prova? Que garantias lhe darão de confidencialidade? Abster-se-ão de contar ao agressor, aumentando o risco em que incorre?

“Muitas vítimas receiam que a investigação seja feita por colegas ou amigos do agressor” e tais medos parecem legítimos a Sofia Neves. Os estudos internacionais revelam que a hipótese de corporativismo não é descabida. “Embora este seja um crime público, há muitas formas de tentar dissuadir as vítimas.”

O que prevê o sistema


Em Portugal, as denúncias de violência doméstica podem ser feitas por qualquer pessoa em qualquer esquadra da PSP, posto da GNR, piquete da Polícia Judiciária ou gabinete do Ministério Público. Oralmente, por escrito, em papel, correio electrónico ou através do sistema de queixa electrónica.

“A autonomia da investigação cabe ao Ministério Público”, recorda o subintendente Hugo Guinote, responsável pela Divisão de Prevenção Criminal, Proximidade de Programas Especiais e Direitos Humanos da PSP. “Pode delegar na PSP, o que acontece, ou entender que deve passar a investigação para outro órgão de polícia criminal, o que também acontece”, sublinha. Se delegar na PSP um caso que envolva um PSP, “normalmente não é na mesma esquadra”.

Explica o oficial que quem desempenha tais tarefas são os quadros de investigação criminal, que em regra têm equipas especializadas em violência doméstica. E que os casos são tratados com sigilo extra quando o denunciado pertence à polícia. “A regra é essas peças processuais serem ocultadas do sistema, impedindo que qualquer outro polícia tenha acesso a não ser o superior hierárquico, que tem de fiscalizar a elaboração do expediente.”

Na GNR, também estão previstas maiores cautelas nestes processos-crime. “Sempre que existem intervenientes militares ou de outros elementos das forças de segurança, o processo fica com o Núcleo de Investigação de Apoio a Vítimas Específicas”, ressalta Andreia Lopes. “É uma forma de garantir a imparcialidade de tratamento perante todas as vítimas.”

Guinote não quer acreditar que, em Portugal, “hoje em dia, com a especial censura que existe em relação ao crime de violência doméstica”, subsista o corporativismo identificado em estudos internacionais. Não confunde lealdade com cumplicidade. “A cumplicidade, de acordo com o Código Penal, é punível”, enfatiza. Mas quem sabe? Nunca ninguém recolheu dados sobre isso.

Quer Guinote, quer Lopes lembram que em Portugal nenhum elemento tem um carro-patrulha atribuído, como acontece noutros países. O patrulhamento faz-se aos pares. Na GNR, nem é suposto os militares levarem a arma de serviço para casa. Lendo os acórdãos dos tribunais superiores disponíveis na base de dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, vê-se como qualquer regra pode ser subvertida. Basta cruzar “violência doméstica” com “arma de serviço”.

O Tribunal de Faro, por exemplo, deu como provado que um agente se valia da sua profissão para controlar a vítima. “Quando estava de serviço, por vezes, aproveitava a patrulha para passar junto à residência e confirmar se [a vítima] estava, telefonava para obter tal confirmação e ainda lhe pedia que quando saísse [do trabalho] passasse na esquadra”, lê-se no acórdão da Relação de Évora, de 5 de Fevereiro de 2019, que recusou recurso. Uma vez, trabalhava ela num supermercado, foi lá, fardado, saber porque não lhe atendera o telefone.

Era como se fosse intocável. “Um dia, vou atirar-te pela varanda e dizer que foste tu que te atiraste”, ameaçou. Agrediu-a à frente do filho, da enteada, da avó dela. Chegou a agredi-la no corredor de um centro comercial em que ela trabalhava. Apontou-lhe a arma de serviço à cabeça. “Ai de ti que me deixes”, ameaçou também. A certa altura, passou a ter no carro um bastão extensível, um aerossol de gás lacrimogéneo, uma arma de electrochoques.

Negou todas as acusações. Foi condenado, por violência doméstica, violação e detenção de arma proibida, a cinco anos de prisão, suspensa por igual período, bem como a frequentar um curso de prevenção de violência doméstica, pagar uma indemnização à vítima e a manter-se afastado dela quatro anos.

A condenação transitou em julgado em 2019. O processo disciplinar respectivo culminou com a aplicação de uma pena disciplinar de aposentação compulsiva decretada pelo ministro da Administração Interna no dia 17 de Agosto de 2020.

Adeus a um em cada cem denunciados

O arquivo é o destino da maior parte destes processos disciplinares. Somando os dados remetidos pelas duas forças de segurança, num total de 401 processos fechados há 59 condenações, entre as quais três repreensões escritas, 45 suspensões, cinco demissões/aposentações forçadas. Diversos técnicos de apoio à vítima ouvidos pelo PÚBLICO associam penas expulsivas a condenações superiores a três anos.

Processos disciplinares instaurados entre 2019 e 2023 que,
até agora, resultaram em condenação

Fonte: PSP e GNR

Penas decididas nos processos disciplinares instaurados
entre 2019 e 2023

Fonte: PSP e GNR




Hugo Guinote pede cautela com os números. “Sugeria que não fosse feita uma avaliação quantitativa. Para se fazer uma avaliação qualitativa tem de se ir caso a caso, tem de se rever todo o processo e de comparar a medida disciplinar com a medida que foi implementada pelo tribunal, para se ver se há um desajuste, porque se calhar não há.”

Andreia Lopes faz menção aos relatórios de monitorização de violência doméstica: entre 2015 e 2021, 78,3% dos inquéritos de violência doméstica resultaram em arquivamento, quase sempre por falta de prova; 16,9% em acusação e 4,8% em suspensão provisória do processo. Dos que chegaram à fase da sentença, 59% deram origem a condenação, quase sempre prisão suspensa. Julga importante estabelecer-se este paralelismo para se perceber o que é comum conseguir em matéria de violência doméstica. “É difícil recolher provas neste tipo de crime.”

Há tribunais que atiram crime para foro pessoal


O afastamento proposto pela PSP e pela GNR e aprovado pela tutela pode sofrer um revés. Na análise dos processos que chegam aos tribunais superiores obtêm-se pistas sobre as práticas em curso e vê-se como alguns juízes continuam a remeter a violência doméstica para o domínio do privado.

Vejamos, primeiro, o exemplo de um agente da PSP que intentou uma providência cautelar contra o Ministério da Administração Interna (MAI) para suspender a sanção disciplinar de aposentação compulsiva, alegando que fora “desproporcional, iníqua e injusta”. O agente arguiu que já estava “na secção de logística, não tendo contacto com o público”; “não foi condenado a pena superior a três anos no âmbito do processo-crime”; e que o ministro “tratou situações análogas com decisões absolutamente diferentes, ou seja, a agentes que foram igualmente condenados no âmbito de processos de violência doméstica, aplicou sanções disciplinares de 60 e 120 dias de suspensão”.

O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto discordou, mas o agente recorreu. E, no dia 21 de Abril de 2023, o Tribunal Central Administrativo do Norte deu-lhe razão. “Não se vê em que medida os factos apurados […] comprometem de forma irreversível o exercício de funções”, lê-se na decisão. “Trata-se de factos do foro pessoal, ocorridos no seio familiar e que nenhuma relação objectiva apresentam com o exercício de funções policiais”, ditaram os juízes Rogério Martins, Luís Migueis Garcia, Conceição Silvestre, tendo esta última votado vencida. “O arguido não usou a arma nem qualquer objecto ligado ao exercício de funções para agredir a ex-esposa, nem usou ou invocou os seus poderes de autoridade para ameaçar ou coagir a vítima.”

Já a 4 de Outubro de 2023, o mesmo tribunal deu razão a um agente que matou a mulher à pancada. “É manifestamente desproporcionada a sanção disciplinar expulsiva, de demissão, aplicada a um agente da PSP por violência doméstica, pela prática de um crime de ofensas à integridade física grave, pelo qual foi condenado em processo-crime, mas sem qualquer ligação objectiva com as suas funções.”

Fora condenado em 2007, pelo Tribunal de Vila Franca de Xira, a seis anos de prisão por ofensa à integridade física agravada pelo resultado. Depois do recurso, que não tivera pavimento, do processo disciplinar adveio a demissão. Entendeu a PSP que com a sua conduta o agente “violou gravemente os deveres profissionais, sendo lesivo e ofensivo à imagem da PSP”.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela recusou-se a declarar nula a sanção disciplinar, mas o mesmo não entendeu o Tribunal Central Administrativo do Norte: “Não se vê em que medida os factos apurados […] comprometem de forma irreversível o exercício de funções, requisito necessário, para além da moldura penal do crime ou da pena aplicada ao caso concreto, para a aplicação de uma sanção disciplinar expulsiva”, repete o colectivo.

Os juízes Rogério Martins, Isabel Costa e Fernanda Brandão referem que “não consta dos autos que o arguido tenha usado a arma de serviço (ou outra) nem qualquer objecto ligado ao exercício de funções para agredir a ex-esposa nem usado ou invocado poderes de autoridade para ameaçar ou coagir a vítima”. E que “não existe a possibilidade de uso excessivo ou criminoso da força física no exercício” das funções, encontrando-se este em fase de pré-aposentação.

Que confiança pode ter um cidadão num polícia condenado por violência doméstica? “É um assunto que é capaz de merecer uma reflexão mais profunda que ainda não fizemos e, eventualmente, alguma pesquisa da academia que também estará por fazer”, reconhece Guinote. Questionada sobre o silêncio que impera, Andreia Lopes admite a necessidade de “maior abertura institucional para debater este tema”.

Tatiana Moura acha que “falta trabalhar a violência doméstica por grupo laboral para perceber que empregos geram mais stress, que é levado para casa e se traduz em violência”, mas vai dizendo que lhe parece essencial disponibilizar apoio psicossocial consistente aos polícias. Sofia Neves também defende estudos académicos com recortes específicos, sem deixar de dizer que “tem de haver códigos de conduta muito claros e fluxogramas de actuação para sancionar eficazmente quem, no exercício de funções públicas, comete um crime tão grave como a violência doméstica”.

Quando o agressor de violência doméstica é de um órgão de polícia criminal

O PÚBLICO quer aprofundar a cobertura jornalista deste tema, no sentido de entender melhor como se processa a violência doméstica perpetrada por elementos dos órgãos de polícia criminal e como reage o sistema. Se já foi ou é vítima de violência doméstica por parte de um membro da PSP, da GNR ou da PJ e está disponível para entrevistas, escreva para acpereira@público.pt, com garantia de sigilo profissional.


Apoio a vítimas de violência doméstica

Telefone: 800 202 148

SMS: 3060

Email: violencia@cig.gov.pt



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